sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

[ [ [ [ AS ÁGUAS DE BETHÂNIA, Maurício Costa ] ] ] ] Maria Bethânia, cantora consagrada de nossa MPB, desembarca nas lojas com o CD ao vivo de sua última turnê, entitulado Dentro Do Mar Tem Rio. O título não poderia ser mais pertinente, visto que o repertório principal é constituído por seus últimos lançamentos em estúdio, a dobradinha formada por Pirata (com a temática centrada nas águas doces) e Mar de Sophia (com a temática centrada no mar e nos versos da poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner - esses também sobre o mar). A água, que sempre fez parte do repertório da cantora, encontra em Bethânia uma grande admiradora: sua paixão pelo mar, pelas praias, rios e cachoeiras foi e é cantada com louvor em seus discos e shows. Esse sentimento é o grande responsável pela produção do par de obras temáticas e do repertório deste show aquático-sonoro, mas traz ainda consigo belas canções de amor e devoção, consagrando a marca que a cantora deixa por onde passa, seja interpretando e encenando canções, seja declamando poemas de seus autores favoritos - em Dentro Do Mar Tem Rio nada disso falta. Ainda de cortinas fechadas, sob o instrumental de "Floresta Do Amazonas" (Villa-Lobos), Bethânia abre o show murmurando o "Canto De Nanã" (Dorival Caymmi), uma homenagem à orixá que habita e protege o fundo dos mares. Emenda na seqüência "Beira-Mar", uma das mais animadas canções de Mar de Sophia, cujos versos batizam o espetáculo (Dentro do mar tem rio / Dentro de mim tem o quê?). Quando entra na temática do show, Bethânia saúda as quedas d'água em "Águas De Cachoeira", brinca com a platéia na composição de Vanessa Da Mata intitulada "Sereia De Água Doce", lembra dos anos 80 "Filosofia Pura" e "O Nome Da Cidade", não muito conhecidas de seu repertório. A cantora ainda entristece com a intensa "Lágrima" e lembra de nossas origens, da vida no útero com a magnífica "Debaixo D'Água / Agora" (Arnaldo Antunes / Titãs), em uma das melhores partes do show. Mas não é só nas águas que flutua o repertório de seu show. Quando firmado em terra, o show traz todo um imaginário de canções, cantigas populares, cirandas, cantos da terra e canções com sabor do sertanejo, como a tranqüila "A Saudade Mata A Gente" ou o resgate do sucesso "Gostoso Demais" (de Gonzaguinha). O clássico "Asa Branca", do consagrado Gonzagão, também pede passagem para lembrar da seca e do sofrimento no nordeste. É impossível citar Bethânia sem lembrar a beleza do fator religioso em seu trabalho como artista: filha de Iansã (orixá dos ventos e das tempestades, que aparece em "A Dona Do Raio E Do Vento") e Oxum (a dona das águas doces é cantada nos versos de Vinícius em "Canto De Oxum"), além de devota de Iemanjá ("Iemanjá, Rainha Do Mar"), a intérprete entoa com fervor sua fé no candomblé e em seus orixás nas letras que canta. As forças e os elementos da natureza são evocados em partes dedicadas do show, em uma mistura de invocação, devoção e paixão. Nota-se claramente que a cantora tem prezado pelas novas canções e pela inclusão de novidades, mas é gratificante ver que Bethânia não renega seu passado e sempre deixa na bagagem um cantinho para reler alguns sucessos, como "Você" (de Roberto e Erasmo, bela peça de "As Canções Que Você Fez Pra Mim"), "Sob Medida" (Chico Buarque) e "Sábado Em Copacabana" (de Dorival Caymmi, que entrou por conta da abertura da novela da Globo). Alguns sucessos antigos (incluindo regravações que reaparecem em "Pirata") entraram no repertório do show, mas acabaram ficando de fora na versão final do CD, como "Atiraste Uma Pedra", "Onde Eu Nasci Passa Um Rio", "Os Argonautas" e "O Tempo E O Rio". Poemas e frases de autores consagrados como João Cabral de Mello Neto, João Guimarães Rosa e Fernando Pessoa também são presença garantida no show. O destaque principal fica por conta do poema de protesto político e social "Ultimatum", de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa), datado de 1917. É impressionante o efeito que o poema surte aos ouvidos e a forma como ele se adequa aos nossos tempos, mesmo passados 90 anos. Após o poema, o show é fechado com uma versão majestosa de "Movimento Dos Barcos", composição de Jards Macalé presente no repertório da cantora desde os primórdios de sua carreira. Por fim, um bis fora do convencional, que inclui o samba-enredo da Portela "Das Maravilhas Do Mar Fez-se O Esplendor De Uma Noite" (gravado em Mar De Sophia) e um pout-pourri de marchinhas de carnaval). Protegida por seus orixás e munida de um repertório belíssimo de canções e poemas, Maria Bethânia mergulha nessa fonte imensa de águas doces e salgadas e leva o público ao deleite, em uma viagem com destino certo e garantido. Melhor que isso, só para quem assistiu ao vivo... É uma pena ainda que dificilmente haverá a versão em DVD do show, pois Bethânia não gostou o suficiente do material que o cineasta Andrucha colheu durante a etapa Rio de Janeiro da turnê no mês de agosto. Visto que a turnê acabou no mês de dezembro, resta esperar pela próxima... E que venha logo!

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